Resumos expandidos
Seguem abaixo LINKS e resumos dos trabalhos em políticas linguísticas críticas, atentando para a dinâmica do poder.
DA SILVA, Vinicius M. P. Câmara Cascudo: oralidade e cultura popular no Brasil. Pesquisa de Iniciação Científica (UFSC-DLLV), 2018.
CAMOZZATO, Nathalia Müller. Representações sobre as línguas e as heranças africanas na obra de Mario de Andrade. Pesquisa de Iniciação Científica (UFSC-DLLV), 2018
CAMOZZATO, Nathalia Müller; FARIAS DA SILVA, Sara; SEVERO, Cristine Gorski. Políticas Linguísticas Críticas: problematizações teóricas e metodológicas. In: Atas do VIII Encontro Internacional de Investigadores de Políticas Linguísticas. Florianópolis: UFSC Universidade Federal de Santa Catarina e AUGM Associação de Universidades Grupo Montevidéu – Núcleo Educação para a Integração, 2017. p. 17-24.
SILVEIRA, Alexandre Cohn; ELTERMANN, Ana Claudia, ELOIZE, Charlott; SEVERO, Cristine Gorski. Políticas Linguísticas Coloniais: história e poder em tela. In: Atas do VIII Encontro Internacional de Investigadores de Políticas Linguísticas. Florianópolis: UFSC Universidade Federal de Santa Catarina e AUGM Associação de Universidades Grupo Montevidéu – Núcleo Educação para a Integração, 2017. p. 93-101.
1 A POLÍTICA LINGUÍSTICA DO QUÉBEC: DO PROCESSO DE IMIGRAÇÃO AO DEVENIR QUÉBÉCOIS (Sara Farias da Silva)
O objetivo geral dessa pesquisa é analisar a relação entre as Políticas Linguísticas e as Políticas de Imigração do Québec. Para contemplar esse objetivo geral iremos i) contextualizar sócio-historicamente as políticas linguísticas do Québec, principalmente a partir da Révolution Tranquille, ii) realizar um levantamento de documentos oficiais para analisar os modos de discursivização do francês nas políticas oficiais de Imigração, para então, iii) confrontar esses discursos oficiais com as práticas discursivas de diferentes esferas ideológicas na cidade de Montreal.
O Québec, província francófona do Canadá, é uma referência no que diz respeito às políticas linguísticas, pois, mesmo estando localizada dentro de um território majoritariamente anglófono, após a década de 60, com a Révolution Tranquille e a criação da Carta da Língua Francesa (também conhecida por Lei 101) consolida as demandas de um povo que se reclama québécois, tornando o francês sua língua oficial. A Révolutioin Tranquille foi um movimento de (re) afirmação de uma identidade vivida pelos francófonos no Canadá. Foi a partir desse movimento que a língua – francês- tornou-se a única língua oficial do Québec. Ocorreu também, nesse período, um movimento de independência/nacionalismo do Québec em relação ao Canadá Anglófono. Não houve essa separação territorial, porém, houve uma separação política-linguística que até hoje perpetua no país, tornando-o bilíngue. Nesse sentido, o primeiro capítulo dessa pesquisa pretende, a partir de uma análise bibliográfica, relatar a história do Québec entre o seu período colonial (1534), a independência do país Canadá (1867) e, principalmente, o movimento nacionalista que ocorreu no Québec (1960), visto que a relação entre língua e política é transpassada pela história e vai impactando e afetando o imaginário coletivo de uma sociedade.
No segundo capítulo iremos analisar o cenário linguístico do Québec após a Révolution Tranquille e quais foram as medidas e estratégias que o Governo do Québec se utilizou para fazer do francês a única língua oficial da província do Québec, isto é, como a língua esteve, e está, à serviço de um projeto político. Para observar e analisar esse cenário linguístico é necessário analisar os modos de discursivização do francês nos documentos oficiais referentes, principalmente, às Políticas de Imigração e à Carta da Língua Francesa, um documento oficial que guia todas as esferas públicas e setores de atividades desde 1977, ano em que o Québec é reconhecido pelo Canadá e pelo mundo, tendo o francês como a língua do Estado e da Lei e também como a língua normal e habitual do trabalho, do ensino, das comunicações, do comércio e dos negócios.
Para o terceiro capítulo, teremos como enfoque a relação das políticas de imigração coordenadas pelas políticas linguísticas. O Québec tem uma política de imigração muito forte, assim como o Canadá. O país recebeu entre os anos de 2001 e 2005 cerca de 260 mil imigrantes por ano e, em 2016, pela questão da demanda de refúgio da comunidade síria, o país recebeu cerca de 300 mil imigrantes (STATSCAN:2016). O Québec recebeu, só em 2016, 50 mil imigrantes, sendo que metade desses imigrantes possui nível superior completo. Isso se deve ao fato de que o Québec possui certas exigências para a demanda de imigração, são elas: a) nível universitário, b) nível intermediário de francês (B2) e c) boas condições financeiras. Para esse recorte sobre a imigração, escolhemos a maior cidade da província do Québec reconhecida como uma cidade multicultural e a comunidade brasileira que pediu imigração na parte francófona do Canadá. A cidade de Montréal é a cidade que mais precisa de mão de obra qualificada e por isso é a cidade que mais acolhe imigrantes, se comparada ao resto da polução do Québec (LAPRESSE;2016).
É a partir de 2000 que o Brasil começou a contribuir com a imigração no Québec. Entre os anos de 2001 e 2011, constata-se um aumento de imigrantes brasileiros no Québec, totalizando nesse período 5575 imigrantes brasileiros. Segundo o Ministério da Imigração Quebequense, cerca de mil brasileiros imigram ao Québec a cada ano e atualmente o Brasil se encontra no 16º lugar no ranking dos países de nascimento dos imigrantes admitidos. O aumento da população brasileira no Québec é um tema recorrente e instigante a ser analisado. Na revista Veja (2015), em uma reportagem cujo título foi “O Canadá busca brasileiros para trabalhar no Québec” observa-se um discurso voltado ao brasileiro com perfil universitário, boas condições financeiras e, obrigatoriamente, com um nível intermediário de francês. Nos documentos oficiais do Governo do Québec a premissa do discurso para uma boa integração na sociedade quebequense é a de que o imigrante tem como obrigação falar bem o francês. Se o francês é condição sine quo non para a imigração no Québec e para uma boa integração na sociedade quebequense, a língua torna-se uma ferramenta de poder para uma governabilidade mais rica de mão de obra qualificada e francófona. Para refinar esse capítulo, realizaremos entrevistas e questionários para i) verificar o perfil desse imigrante brasileiro, ii) o regard desse imigrante sobre o processo de imigração até o devenir québécois e iii) o regard dos québécois em relação à imigração e a esses imigrantes brasileiros.
No quarto capítulo, pretende-se confrontar as análises encontradas sobre i) o cenário linguístico do Québec e ii) os modos de discursivização do francês nos documentos oficiais com as práticas e impressões dos participantes (imigrantes brasileiros e québécois). No quinto capítulo, pretendemos analisar e problematizar a dinâmica do poder nas Políticas Linguísticas do Québec nos apoiando, principalmente, em Michel Foucault (1976, 1984), Hannah Arentd (1958), Charles Taylor (2007) e Guy Rocher (1979, 1989 e 2002).
Palavras-chave; Política Linguística, Québec, Poder, Política de Imigração, Brasil
2 LÍNGUAS AFRICANAS NO BRASIL: MEMÓRIA, HISTÓRIA E RESISTÊNCIA (Nathalia Muller Camozzato)
A presente seção tem por objetivo relacionar línguas, ou seja, práticas linguísticas e os contextos culturais nas quais tais práticas se dão, tendo por enfoque o caso afro-brasileiro. Sob diversas formas, oblitera-se a matriz negra determinante na história, formação e constituição do Brasil, dada pela presença dos escravizados africanos. Melhor dizendo, invisibilizada e silenciada é a negritude constitutiva daquilo que se nomeia brasilidade. Nesse sentido, dando a ver tal fratura é que se pretende efetuar a relação que enunciamos acima (cultura, sociedade, discursividades e línguas) para deflagrar a presença e a resistência dos falares afro-brasileiros, especialmente no âmbito da religiosidade, sob a forma das chamadas “línguas de santo” ou “línguas rituais” (CASTRO, [s./d.]).
Juntamente dos corpos escravizados, submetidos por todo um dispositivo colonial dos quais foram mesmo o dínamo, também foram silenciadas suas vozes: suas discursividades, a esfera de suas práticas, suas linguagens. Por outro lado, no interior da violenta colonialidade que atravessa essa porção diaspórica da história – ferida intermitente –, também os assujeitados resistiram, perpetuando os seus sistemas simbólicos e interpenetrando-os no universo em que foram inseridos, inscrevendo sua experiência negra no interior do universo que os coisificava e explorava. A esse tecido e a tais transcriações, filósofos e críticos afroperspectivistas costumam aplicar a epistemologia da encruzilhada (MARTINS, 1997): processos de devir e entrecruzamento.
Sob tal prisma, buscamos, aqui, atentar para esse processo de violência e submetimento, de um lado, e, por outro, de refração e resistência, observando as particularidades da trajetória diaspórica desses falares e o desafio que levar tais práticas linguístico-discursivas em consideração representa aos conceitos de língua assumidos pelo campo disciplinar da linguística. Consideramos, aqui, que as línguas são produtos das práticas sociais que não podem ser tomadas isoladas de seu uso, aprioristicamente e, ainda, que políticas de língua dizem respeito às políticas das pessoas, sendo que toda atividade linguística é uma atividade política e que toda atividade política é uma atividade linguística (RAJAGOPALAN, 2003). Ao imbricamos línguas e relações sociais, entendemos, portanto, que não existem línguas mais ou menos empoderadas, senão atores sociais mais ou menos empoderados, em situações de dominação e, nesse ínterim, localizamos as relações constitutivas dadas entre língua, cultura, sociedade e política, que perpassam toda a esfera da produção de conhecimento linguístico – a vontade de saber e vontade de poder de que nos fala Foucault (1999).
Quanto ao processo de resistência, privilegiamos, em nossas considerações, a esfera do sagrado, isto é, o âmbito da religiosidade afro-brasileira, pensando nas casas afro-brasileiras (ou terreiros, ou nações, dentre a diversidade de nomeações) como espaços de resistência linguística, discursiva e simbólica, espaços que possibilitaram a manutenção dessa cultura e a sua interpenetração na composição daquilo que entendemos como brasilidade. Leda Maria Martins (1997), ao abordar as práticas de oralitura dadas na cultura bantu em solo brasileiro, afirma que os mais evidentes sentidos compartilhados são as noções de comunidade, ancestralidade e perpetuação. Nesse contexto, as línguas, sabidamente, ocupam um espaço privilegiado, uma vez que compõem a produção de identidade dessas comunidades e assumem um vínculo com outro conceito importante que é o de ancestralidade.
Se avançarmos nessa esfera da religiosidade e, mais ainda, nas políticas que se dão sobre as línguas, os discursos, as culturas e o papel das instâncias do sagrado nessa rede de relações de poder, estaremos diante dos papéis assumidos, por um lado, pelo catolicismo e seu protagonismo nas agências coloniais, chegando-se mesmo a uma linguística colonial (MAKONI; PENYCOOK, 2006; MAKONI; MEYHOFF, 2004), a construção de saberes sobre as línguas de outros povos que não europeus segundo chaves-interpretativas greco-latinas, que acarretou determinantemente nos contornos assumidos pela Linguística contemporânea em suas concepções do que é língua, como essa entidade deve ser estudada, à parte das práticas sociais e comunicativas, que justamente a motivam, e do sistema interssemiótico complexo que a perpassa e que é perpassado por ela.
Assim, os falares afro-brasileiros[2] dados no âmbito ritual transbordam e ultrapassam esse discurso linguístico. Primeiramente, por, no contexto diaspórico, terem se misturado e interpenetrado numa dinâmica de comunicação, estando fora da noção de língua enquanto estrutura cerceada em si mesma; em segundo lugar, especificamente no caso das línguas cultuais, por terem um funcionamento dado em um contexto intersemiótico complexo que inclui os gestos ritualísticos, a música, os alimentos, as vestimentas etc.; e, finalmente, pela corporeidade que tais práticas linguístico-discursivas interpelam: a vocalidade e a gestualidade que lhes são implicadas num contexto ritual.
Chega-se aqui à noção de africanias, um dispositivo analítico que permite contemplar a integralidade dada entre línguas, discursos e práticas sociais e culturais. Segundo Castro (s./d.), entende-se por africanias a bagagem cultural submergida nos negroafricanos no Brasil, que se faz presente na música, na língua, na dança, na religião e nos modos de ser e ver o mundo, que se converteram em matrizes da construção de um sistema cultural e linguístico que nos identifica como brasileiros.
3 A (RE)CONSTRUÇÃO DO MULTILINGUISMO EM ANGOLA (Heloisa Tramontim de Oliveira)
O Português Brasileiro, em sua formação, foi extremamente influenciado pelas línguas africanas, principalmente pelas de origem Banto, provenientes de Angola. Há diversas hipóteses que postulam essa influência africana na formação do Português Brasileiro, especialmente na modalidade oral (CÂMARA Jr., 1977; LUCCHESI et. al, 2009; CASTRO, 2005). Embora o objetivo aqui não seja discutir o processo de formação do Português Brasileiro, salienta-se a formação de discursivização da língua falada no Brasil em relação à influência das línguas africanas. O uso do termo ‘popular’ para designar as heranças africanas sinaliza também para a construção de um estereótipo que vincula as ideias de africanidade com as noções de variedade, oralidade e dimensão popular, como é o caso do português popular brasileiro. Tais ideias se contrapõem às noções de língua, escrita e dimensão culta, ratificando um certo valor simbólico estereotipado para as línguas e povos africanos.
Em contraponto ao monolinguismo europeu, o multilinguismo africanoapresentaria problemas para uma governamentabilidade centrada na ideia de Estado Nacional. Por conta disso, Angola se deparou com o modelo monolíngue europeu e adotou-o, ou seja, a adoção da Língua Portuguesa foi tomada tal qual bandeira de unificação do país diante da uma realidade multiétnica e multilíngue. Este trabalho explora as iniciativas institucionais de validação desse multilinguismo em Angola.
Entretanto, no embalo de Makoni & Meinhof (2004), consideramos que as concepções de línguas contêm pressupostos que comumente estão encobertos por metáforas conceituais. Isso quer dizer que as línguas africanas têm suas especificidades que não devem ser apagadas sob a sombra da língua europeia. Desse modo, propor-se a compreender as línguas africanas por meio de lentes de uma semiótica europeia resulta em não as compreender de forma contextualizada, pois dessa forma se toma o lugar do outro e fala-se pelo outro (MAKONI; MEINHOF, 2004).
Em África, tais concepções não existiam antes da introdução do evangelismo cristão e do letramento (MAKONI; MEINHOF, 2004). Os conceitos básicos de língua herdados pela ideologia do Estado-Nação se referem ao lema “uma nação, uma língua, uma cultura” (RAJAGOPALAN, 2008), não condizentes ao contexto africano plurilinguístico e, portanto, incapazes de corresponder à realidade dos povos ali viventes, pois, como dizem Fardon e Furniss (1993), o “multilinguismo é a língua franca da África”. Estes são os desafios enfrentados pela proposta desta pesquisa. Assim, indagamos como os discursos de multilinguismo constroem uma dada concepção de língua em Angola, ratificando ou subvertendo as metáforas conceituais europeias.
4 ONDE ESTÁ A LÍNGUA PORTUGUESA EM DÍLI? REFLEXÕES SOBRE POLÍTICAS E PRÁTICAS LINGUÍSTICAS EM TIMOR-LESTE (Alexandre Cohn da Silveira)
Este trabalho propõe uma análise de documentos oficiais que estabelecem as políticas linguísticas oficiais de Timor-Leste, confrontando-os com as práticas relativas ao uso da Língua Portuguesa em ambientes diversos na capital, Díli. A intenção é perceber como a concorrência entre os idiomas institucionalizados pela constituição do país (Português e Tétum, como línguas oficiais; Inglês e Indonésio, como línguas de trabalho) se reflete na constituição da paisagem linguística (SHOHAMI, 2006; SILVA, 2013; MACALISTER, 2012; BEM-RAFAEL, 2006) da cidade, interferindo no uso da Língua Portuguesa. A paisagem linguística abarca placas e cartazes de instituições privadas (não oficiais), anúncios publicitários em painéis, anúncios publicitários expostos em transportes públicos e veículos particulares, rótulos de produtos, bem como placas e avisos governamentais, placas de ruas, nomes de prédios, nomes de ruas e inscrições nos prédios públicos (LANDRY; BOURHIS, 1997)
Essa divisão, no entanto, nem sempre possui uma fronteira definida, como é o caso de Timor-Leste. Mais comuns são casos em que a linguagem dos sinais privados, que geralmente apresenta alta diversidade linguística, difere da linguagem dos sinais institucionais. Em Díli, isso pode ser um reflexo da natureza multilíngue da capital timorense, mas menos em relação à diversidade linguística inerente ao território localizado em uma zona tradicionalmente multilíngue na Ásia, mas principalmente devido à alta circulação de estrangeiros no país e a um histórico de ocupações pelo qual passou a região, que condicionaram a presença de línguas como o português e o indonésio, por exemplo.
O corpus de pesquisa é composto por fotografias tiradas nas principais ruas da região central de Dili, integrando uma seleção de 323 imagens de faixas, fachadas de prédios públicos e comerciais, cartazes e placas diversas. As fotografias foram classificadas em oficiais / top-down (66) e não oficiais / bottom-up (257). Os dados levantados foram tabulados quantitativamente, no que diz respeito à incidência dos idiomas (português, inglês, tétum, indonésio e outros). Assim foi possível perceber, quer no âmbito institucional, quer no âmbito público, a presença e a concorrência dos idiomas constitucionais nos espaços analisados.
Igualmente foram analisados documentos oficiais do país, tais como Constituição da República Democrática de Timor-Leste, Lei de Bases da Educação, Plano do Ministério da Educação para 2013-2017, Decreto-Lei nº 06/2013 – Lei Orgânica da Educação e o Plano de Carreira dos Profissionais da Educação. Os documentos forneceram informações oficiais a respeito dos idiomas institucionalizados no país. Destes documentos foram retiradas todas as menções feitas sobre os idiomas constitucionais, as quais foram confrontadas com os dados qualitativos, possibilitando assim algumas reflexões acerca dos resultados obtidos, à luz das teorias estudadas.
Foi possível notar uma preocupação governamental em demarcar a importância dos dois idiomas oficiais nos documentos institucionais assim como na maioria das placas oficiais analisadas, com presença do Tétum, em 43,9% das placas, e do Português, com 74,2% das ocorrências. Apesar disso, o governo de Timor-Leste possui uma política linguística que reside num plano ideal ou, conforme Calvet (2007), uma política in vitro. Na região pesquisada, a política e a prática linguísticas nem sempre seguem os mesmos rumos. A realidade, que Calvet (2007) chama de política in vivo, percorre outros caminhos, evidenciando que o planejamento linguístico, o qual deveria efetivar as políticas adotadas, ou, não possui força adequada para se estabelecer, ou, sofre resistência por parte dos usuários, dadas as necessidades e intenções comunicativas cotidianas.
No interior dessa paisagem, a Língua Portuguesa veicula principalmente discursos da burocracia institucional e é um recurso para promover a educação formal. Nas ruas, onde as práticas linguísticas seguem um rumo próprio, seu lugar ainda é limitado pelas necessidades comunicativas da população, que adota, principalmente, as línguas tétum, indonésia e inglesa para a veiculação de vários propósitos – desde anúncios em restaurantes e placas governamentais a avisos dirigidos a turistas e estrangeiros que circulam pela região pesquisada.
Vale destacar ainda que o preceito constitucional quanto ao uso dos idiomas de trabalho (inglês e indonésio), restritos apenas ao âmbito da administração pública e por um tempo determinado pelos fatores circunstanciais, não se reflete nas práticas linguísticas. Isso significa que um número considerável de usuários destes idiomas os utiliza cotidianamente em situações alheias à administração pública e, provavelmente, continuarão a utilizá-los a despeito de uma política linguística, no caso, distante das necessidades da população.
Buscamos, dessa forma, contribuir para os estudos sobre o multilinguismo em/sobre Timor-Leste, destacando a complexidade da realidade multilíngue e as delicadas fronteiras entre o plano de Estado para este multilinguismo e as dinâmicas sociais que movimentam suas engrenagens. Evidencia-se uma dissonância entre a “política linguística” e o “planejamento linguístico”. Isso merece reflexão e discussão mais aprofundada sobre os efeitos da verticalidade das políticas linguísticas e o desfavorecimento proporcionado quanto ao uso dos idiomas em seus ambientes linguísticos, o qual aparentemente compromete os objetivos sociais do uso das línguas e o próprio planejamento linguístico.
5 A HORA E A VEZ DA LÍNGUA PORTUGUESA? INTERESSES ENVOLVIDOS NAS POLÍTICAS OFICIAIS DE INTERNACIONALIZAÇÃO DO PORTUGUÊS (Charlott Eloize Leviski)
O crescente interesse econômico pela Língua Portuguesa tem se evidenciado nas últimas décadas por meio de diversas instâncias. De acordo com Zoppi-Fontana (2009, p. 37), observamos um forte “[…] processo de mercantilização das línguas […]”, sendo que “[…]o processo de capitalização linguística[…]” se caracteriza por investir uma língua em termos de valor de troca, qualificando-a como mercadoria e investimento para mercados futuros. Assim, seu valor poderia ser cotado em termos simbólicos e econômicos (DINIZ, 2008). O ensino de línguas, portanto, tornou-se um grande mercado. De fato, a venda do denominado communicative approach está para além de motivações mercadológicas, mas, também políticas.
A cooperação sem subterfúgios e a competição saudável entre identidades e culturas nacionais, segundo Luis Reto (2012), conduzirão o português a assumir o estatuto de língua global. Assim, resultará em um instrumento de valor econômico fundamental para os países de idioma português. A respeito desse tema, Barbosa da Silva (2013) afirma que a última finalidade é sempre o poder, o mesmo poder que as línguas europeias forneceram aos seus Estados durante o colonialismo; por isso, a homogeneização da Língua Portuguesa seria uma ‘ótima estratégia’ no mercado das línguas.
Pensando na relação de tensão entre Brasil e Portugal, que historicamente já passaram pela situação de colonizado e colonizador, num contexto pós-colonial, posicionam-se num patamar de igualdade enquanto usuários da língua, muitas vezes não aceito pelo ex-colonizador. A ideologia do ‘português legítimo’ vigora em forma de disputa entre o Português do Brasil e o Português europeu, resultando em uma política de internacionalização, ao que nos parece, desarticulada e bivalente. A presente comunicação apresentou as principais políticas oficiais de internacionalização do português na atualidade, tomando por enfoque as instâncias oficias do Brasil e de Portugal, traçadas sucintamente a seguir.
A principal política brasileira é intermediada pelo Itamaraty (2015), por meio da Divisão de Promoção da Língua Portuguesa (DPLP), vinculada ao Ministério das Relações Exteriores, que coordena projetos e centros para promoção da língua e cultura brasileira com o projeto Rede Brasil Cultural. Atualmente existem 24 CCBs (Centros Culturais Brasileiros) no exterior, distribuídos na África, América, Europa e Oriente Médio, cuja principal missão é promover a cultura e a Língua Portuguesa falada no Brasil, por meio das artes em geral como a Literatura, a Música e o Cinema. Além disso, possui cinco Núcleos de Estudos Brasileiros que funcionam como unidades complementares de ensino, situados em embaixadas ou vice-consulados.
Em Portugal, o ensino de língua é altamente integrado ao estado. Segundo o governo português, a criação do Camões – Instituto da Cooperação e da Língua, I.P. (Camões, I. P.) foi um dos principais instrumentos eficazes na política de cooperação, sendo a meta projetar o Camões I.P. como entidade de referência na condução da política de cooperação, “[…] ao nível de supervisão, direção e coordenação nacionais […]” (PORTUGAL, 2014, p. 43). De fato, o principal canal de planificação de políticas externas de língua por parte de Portugal tem sido o Camões I.P. Constatamos uma rede bastante integrada de promoção externa da língua e cultura portuguesas, por meio de programas que apoiam a criação de departamentos de português ou estruturas equivalentes em universidades estrangeiras.
No que concerne à normatização da Língua Portuguesa, existem dois sistemas de certificação e de avaliação. O Certificado de Proficiência em Língua Portuguesa para estrangeiros (Celpe-Bras) é o exame brasileiro para certificar a proficiência em português como língua estrangeira, reconhecido oficialmente pelo governo brasileiro. O exame certifica quatro níveis de proficiência de Intermediário a Avançado e, curiosamente, foi criado em 1998, mesmo ano em que Portugal criou seu Sistema de Certificação e Avaliação do Português Língua Estrangeira (SCAPLE). Os dois sistemas de certificação e de avaliação do português representam uma polêmica, uma cisão: duas políticas, duas línguas concorrentes, dois Estados soberanos que detêm poder de atestar a proficiência de sua língua nacional para estrangeiros. Isso gera, por exemplo, um freamento das políticas multilaterais e nos acordos de cooperação firmados pela CPLP.
Após essa breve exposição das políticas em ação por parte dos dois países, observamos que a questão da língua e cultura estão sempre atreladas, mais exatamente, a menção à língua vem sempre acompanhada da cultura brasileira ou da cultura portuguesa. Assim, colocamos em debate que a principal estratégia de intensificação política linguística de expansão do português, por parte de Portugal e do Brasil, estaria atrelada à diplomacia cultural. Consoante a isso, a falta de menção clara de que se trata de uma política linguística e o enfoque para a diplomacia cultural seria uma indicação da atuação do soft power (NYE, 2004).
6 PALAVRAS FINAIS
As reflexões aqui apresentadas vinculam-se à linha de pesquisa de Políticas Linguísticas, do Programa de Pós-Graduação em Linguística da UFSC. Assumimos uma perspectiva crítica que questiona e problematiza as relações de poder definidoras de conceitos de língua que permeiam práticas e discursos institucionalizados. Trata-se de considerar uma abordagem histórica e/ou a perspectiva dos sujeitos considerados periféricos para definir aquilo que conta como língua. Nos alinhamos a uma concepção de política fortemente imbricada nas práticas discursivas circulantes pelo espaço público, como lugar de construção – pela ação e pelo discurso (ARENDT, 2005) – de um sentimento de comunidade e de pertencimento.
REFERÊNCIAS
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[1] Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Linguística/UFSC, bestxandy@gmail.com; Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Linguística/UFSC, charlott18@hotmail.com; Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Linguística/UFSC, nathy.rigby@gmail.com; Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Linguística/UFSC, heloisatramontim@gmail.com; Docente do Programa de Pós-Graduação em Linguística/UFSC, crisgorski@gmail.com.
[2] Não utilizamos a nomenclatura “africanos” por entendermos que as práticas dadas ainda em África não são exatamente coincidentes com aquelas que se deram no Brasil.
1 INTRODUÇÃO
Este texto agrupa a síntese de quatro trabalhos apresentados no GT Identidade Tradição e Língua, apresentado na IX Semana Acadêmica de Letras da UFSC. O primeiro trabalho, de autoria de Valle, discute teoricamente e de forma ilustrativa a maneira com significados identitários regionais (ser manezinho) são inscritos em usos linguísticos específicos, os marcadores discursivos; a segunda seção apresenta reflexões de Azevedo sobre a identidade germânica do Sul do Brasil, apontando para a sua heterogeneidade, de forma a se evitar conceitos cristalizados de língua e identidade, especialmente no âmbito das políticas linguísticas; o terceiro trabalho apresenta um relato de experiência feita por Calippo sobre os desafios enfrentados pelos alunos indígenas do curso de Licenciatura Intercultural da UFSC; por fim, a última seção discute teoricamente a relação entre identidade, língua e tradição, sinalizando para a importância política de considerar tais aspectos como processos, desnaturalizando sua compreensão.
2 MARCADORES DISCURSIVOS E QUESTÕES DE IDENTIDADE EM FLORIANÓPOLIS (Carla Regina Martins Valle)
Alguns marcadores discursivos (MDs), além de suas múltiplas funções no plano interacional, no plano cognitivo, e no plano das atitudes do falante, parecem ter o potencial de caracterizar identidades e/ou indivíduos.
Em uma amostra de fala composta por 30 entrevistas sociolinguísticas com indivíduos da comunidade da Barra da Lagoa – Florianópolis/SC, Valle (2014) encontrou um total de 1.610 ocorrências de sete MDs que foram mais frequentes na subfunção de requisitos de apoio discursivo, na qual a propriedade fundamental é a interacional: sabe?,sabes?, entende?, entendeu?, (en)tendesse?, tá entendendo?e tás entendendo?.
Nesta comunidade – por muito tempo isolada e que a partir de 1980 passa a receber grande contingente populacional vindo, principalmente, dos estados vizinhos e de São Paulo – forças ligadas a aspectos identitários atuam sobre o uso de alguns desses MDs. O item (en)tendesse?, em especial, pode ser tomado como marca que, em conjunto com outros traços, constitui uma variedade/identidade florianopolitana, em relação à qual os indivíduos realizam movimentos de aproximação e distanciamento. As formas sabes? e tás entendendo?, apesar de não serem reconhecidas como marcas evidentes da variedade local, também podem ser tomadas em conjunto com entendesse?, opondo-se às demais formas neutras (sabe?, entende?, entendeu? e tá entendendo?), por sua marca de concordância em P2 e pela pronúncia geralmente palatalizada do segmento final. Os trechos abaixo ilustram o uso desses itens:
(1) F: Ah, ô, tão matando gente aí que tá:: direto os cara tão morrendo aí de graça, tão matando. Por quê? Isso aí é gente que:: não tem onde:: como ganhar um dinheiro, desemprego, aí tem que:: não tem trabalho tem hora que tem que roubar… porque a coisa tá feia, tendesse?
E: É mesmo! (BARRA27MA8)
(2) F: [Ah, pescava,] fazia um caldo pra comer e outro bocado lá um vizinho comprava um peixinho… tás entendendo? e o outro mais não queria mais. (BARRA44MB5)
(3) Às vezes então não, cortava, fazia assim comprido e depois cortava, já ia cortando a broa do tamanho certo, sabes? E: Ah!… ah, depois botava numa forma pra botar no forno pra cozinhar. (BARRA39FB4)
A Sociolinguística da década de 1960, que lidava com uma sociedade hierarquicamente mais estruturada, enfrenta a necessidade de renovação de bases teóricas e métodos diante da sociedade pós-moderna (híbrida, plural, globalizada). (MENDOZA-DENTON, 2002; HALL, 2005; COUPLAND, 2007; SEVERO, 2007; SCHILLING-ESTES, 2002; ECKERT, 2001, 2012; GÖRSKI; VALLE, 2014; VALLE; GÖRSKI, 2014; VALLE, 2014). Entendendo que o significado social das formas linguísticas é múltiplo e localmente negociado, é necessário repensar as macrocategorias sociais mais gerais, dando maior peso a variáveis pensadas a partir da configuração particular da comunidade investigada e dos conflitos sociais e identitários que dela emergem (ECKERT, 2004).
Partindo dessa necessidade, Valle (2014) propôs correlacionar o uso dos MDs em questão com variáveis sociais localmente pensadas, quais sejam: a) características da fala dos florianopolitanos; b) localismo/mobilidade; e c) avaliação/vínculo em relação aos moradores não nativos. Unido essas três variáveis, a autora elaborou uma variável complexa chamada grau de identificação com o local para tentar medir, de forma mais robusta, a correlação entre o uso dos MDs e o grau identificação dos indivíduos entrevistados com a localidade.
As análises revelaram que sabes?, tás entendendo? e entendesse? são altamente favorecidos entre informantes com maior grau de identificação com o local, o que atesta o funcionamento dos três itens, principalmente de (en)tendesse?, como marcadores de identidade florianopolitana nativa.
O uso dos MDs pode nos dar alguns indícios sobre os movimentos de identificação entre os nativos da Barra da Lagoa. De um lado, a maior ocorrência desses itens entre os indivíduos que mais se identificam com o local pode estar indicando o reforço de uma identidade ligada à tradição, como sinal de resistência às influências externas. Por outro lado, os dados de entendesse?, sabes? e tás entendendo?, somados, representam uma parcela pequena em relação ao total de MDs (347 ocorrências do total de 1.610 dados – 22 %), o que, em conjunto com a diminuição de outros traços locais, poderia estar associado a uma atitude de submissão a uma cultura homogeneizada implementada pela mescla de novos moradores.
Por ora, é possível concluir que o controle de MDs através de variáveis sociais pensadas para a comunidade em análise atesta (i) que esses itens podem cumprir atuações no plano social/identitário como marcadores de identidade de grupos de falantes e (ii) que fatores culturais de natureza mais ampla têm importante papel sobre o uso das formas linguísticas.
3 IDENTIDADE E LÍNGUA NA TRADIÇÃO GERMÂNICA BRASILEIRA (Liliam Kleide Arnhold de Azevedo)
A crise econômica que assolava a Europa no século XIX acarretou um processo migratório sem precedentes na história europeia. O quadro de instabilidade política e econômica europeu, aliado aos conflitos religiosos e políticos, fez com que muitas pessoas deixassem seu país em busca de uma nova vida. Diante desse cenário e trazendo à luz uma dimensão histórica, multiétnica e plurilíngue da formação identitária do sul do Brasil, defende-se que os discursos e as práticas de preservação das línguas minoritárias, bem como as políticas de intervenção pró multi/pluri/bilinguismo, devem estar ancoradas nos interesses e histórias dos sujeitos e das comunidades que são alvo dessas intervenções. No contexto dessa pesquisa o município alvo desse estudo é Salvador do Sul, localizado no Rio Grande do Sul.
A simples afirmação de que o sul do Brasil foi povoado por alemães e italianos, por exemplo, não soa apenas incorreta/incompleta, como também não ecoa as vozes e os discursos, que de forma complexa, constituem as histórias e os sujeitos dessa região. Dar foco a uma só etnia como fundante parece tão absurda quanto a afirmação de sermos um país linguisticamente homogêneo.
Para além da heterogeneidade cultural e linguística dos grupos de imigrantes, observa-se que “[…] o patriotismo ainda é um instinto preso a gleba, e restrito ao torrão natal” (WILLEMS, 1946, p. 31) na primeira fase da imigração alemã. Logo, nesse período, não se observaram manifestações identitárias, uma vez que grande parte dos imigrantes aportaram no Brasil antes mesmo da unificação da Alemanha e, portanto, não se identificavam como alemães. Muitos desses imigrantes eram prussianos, hanoverianos, pomeranos ou moselanos, por exemplo. A ideia de uma língua como uma solução acabou dizimando as práticas orais e amortecendo a diversidade do pluridiscurso da sociedade pluriétnica da primeira fase migratória. A ideia de Estado Nacional, o Protestantismo e a construção de uma ideia de “comunidade” no Brasil como forma de legitimação possibilitaram a emergência da ideia de germanidade como recurso simbólico usado por diferentes grupos de interesse e status.
As características das pessoas que integraram a colonização alemã sempre levantaram reações antagônicas e isso se deve, em grande parte, ao tratamento generalizado empregado aos imigrantes, como “colonos”, “agricultores” ou, ainda, simplesmente “alemães”. De fato, a composição sócio-profissional desses grupos de imigrantes apresentou representantes de “[…] quase todas as classes sociais, ainda que em proporções desiguais, fornecem seus contingentes de emigrantes, contribuindo assim para a heterogeneidade cultural daqueles que tencionam radicar-se no Brasil. ” (WILLEMS, 1946, p. 32).
Considerando essas questões de cunho identitário, cultural e histórico torna-se necessário, no contexto atual de proliferação de políticas linguísticas de co-oficialização da língua alemã no Brasil, rever o conceito de língua veiculado por tais políticas. Logo, considerar o processo de oficialização de uma língua como pretexto para a proteção de uma dada cultura “germânica”, implica não apenas tematizar aspectos históricos, culturais e identitários, mas considerar as relações de poder que perpassam aquela construção. Isso significa que as políticas linguísticas que desconsideram o percurso histórico das identidades e das línguas produzem e reforçam estereótipos que, em nome da preservação da diversidade, podem produzir efeitos contrários.
4 LICENCIATURA INTERCULTURAL INDÍGENA: O ENTRE LUGAR DO INDÍGENA NA ACADEMIA (Renatta Barros Calippo)
Com o crescente avanço das licenciaturas interculturais nas universidades federais – como fruto de políticas públicas federais – faz-se necessária não somente a “inclusão” dos indígenas no sistema educacional superior, mas, também, a inserção de sua vida cotidiana no ambiente acadêmico. Considera-se que o processo de “inclusão” – passível de uma série de problematizações – é uma tarefa que se constrói em diálogo com os modos de viver e de entender o mundo dessas populações, levando em consideração suas etnias, línguas, tradições e, principalmente, seus desafios nesse processo de negociação intercultural.
Mais especificamente no curso de licenciatura intercultural indígena ministrado na Universidade Federal de Santa Catarina, as línguas que permeiam as diversas vozes que constroem este espaço são: kaingang, laklãnõ-xokleng e guarani, paralelamente com a produção acadêmica realizada em português brasileiro. Pensar a identidade do aluno indígena, nesse caso, não diz somente respeito à cultura circunscrita aos usos linguísticos, mas inclui também práticas e tradições culturais singulares. Assim, a elaboração de um currículo – produzido pelo não-indígena – que abarque essas singularidades significa também considerar que ao iniciarem suas jornadas acadêmicas, esses sujeitos não mais estarão lidando com suas rotinas cotidianas. É preciso e necessário considerar a nova construção identitária que nasce juntamente com o número de matrícula do aluno, ou seja: o sujeito acadêmico indígena.
Os cursistas indígenas da Licenciatura Intercultural, inicialmente, desafiam-se saindo de suas aldeias e deixando seus entes queridos por períodos cíclicos (algo que para a cultura indígena é muito delicado, pois para muitas etnias a vivência diária com a família é extremamente importante), além de enfrentarem a distância do deslocamento até a universidade que, em muitos casos, é bastante longa. Após esse primeiro contato percebem-se em uma outra realidade, seja ela afetada por um outro estilo de vida ou por pessoas com outras bagagens interculturais. Os alunos indígenas chegam à universidade e ali nasce pouco a pouco um sujeito diferente, sendo que muitos deles trazem pouco estudo formal não-indígena na bagagem. Com isso, eles desenvolvem em si uma outra identidade que será aquela que de certo modo vai conviver com os estranhamentos e o impacto das diferenças entre não-indígenas e indígenas no interior da instituição universitária. Habituar-se à linguagem é o principal desafio para emancipar o eu acadêmico e produzir o conhecimento que a instituição espera desses alunos.
É notório que cada aldeia e povo que apoia seus integrantes para irem estudar espera que os alunos indígenas consigam produzir conhecimento sobre e para os benefícios e avanços de sua região original. O pequeno espaço acadêmico que possuem hoje volta-se para fomentar sua própria construção intelectual e representatividade, o que é muito importante para perpetuar a dimensão política da representativa desse grupo. Em contrapartida, suas tradições orais misturadas com um aprendizado de português brasileiro, forçado pela obrigação científico-acadêmica, pressionam o acadêmico indígena para sobreviver nesta selva de livros, para que se legitime sua presença. Para tanto, esses sujeitos constituem-se em um entre-lugar que orbita entre a camada institucional (e seus gêneros discursivos acadêmicos) e a história de vida indígena, negociando sentidos e práticas.
Nossas reflexões etnográficas – a partir da experiência com os alunos indígenas – nos mostram que os paradigmas educacionais, desde suas bases, e os próprios profissionais da área precisam aderir a novas reflexões para as diferentes realidades educacionais a fim de aprimorar as metodologias e de fato “incluir” e agregar os saberes, evitando tornar-se somente estatística para alimentar os índices educacionais federais. A educação se constrói em seu fazer, e a cada experiência vivida espera-se que a maturidade da sociedade acadêmica aumente para se construir espaços não somente inclusivos, mas, sobretudo, de maior visibilidade civil e política para os povos que habitam e fazem parte de nosso país.
5 LÍNGUA, IDENTIDADE E TRADIÇÃO: DISCUSSÃO TEÓRICA E IMPLICAÇÕES POLÍTICAS (Cristine Gorski Severo)
Discussões sociolinguísticas acerca do significado identitário dos usos linguísticos envolvendo a temática da tradição tendem a reduzir essa dimensão a variáveis etárias quantificáveis. Esta seção apresenta um trabalho que defende a importância de se considerar a língua como um produto de práticas identitárias, o que significa que os usos linguísticos não são anteriores a essas práticas, mas seus efeitos. Considerar a insersecção entre identidade, língua e tradição implica levar em conta as práticas linguístico-discursivas de sujeitos que se constituem em relação à ideia de uma certa tradição. Para tanto, considera-se importante problematizar a relação identidade-tradição-língua dessencializando o conceito de língua e considerando essa tríade como um processo, ao invés de produto. Nesse sentido, identidade e tradição também não existem de forma abstrata e anterior às práticas linguístico-discursivas.
Como proposta analítica, considera-se como instância de construção da identidade tradicional as narrativas de pessoas que advogam ter forte vínculo afetivo (de pertencimento) com uma dada localidade, como é o caso das rendeiras, dos pescadores e dos ditos “nativos” de Florianópolis. Esse sentimento de pertencimento, contudo, pode ser exemplificado com outros casos, como a reivindicação da identidade germânica ou italiana de comunidades de imigrantes residentes no Brasil. Acredita-se que as narrativas de pertencimento, ao veicularem discursos de tradição, sejam um lugar de construção das identidades regionais/locais e de anexação de significados sociais e identitários aos usos linguísticos e discursivos (ECKERT, 2004A; HALL, 2006). Dessa forma, em termos linguístico-discursivos, nos interessa averiguar a relação entre os discursos de pertencimento e os usos linguísticos na construção de uma representação de tradição. Ou, em outros termos, a maneira como a língua emerge como lócus de construção de identidades de pertencimento.
Metodologicamente, consideram-se para fins analíticos as seguintes instâncias de produção, manutenção e negociação de sentidos identitários: (i) Discursos/narrativas de tradição sobre práticas sociais locais; no caso de Florianópolis, consideram-se os temas de renda, pesca, cura, farinha de mandioca, entre outros. Ressalta-se o cuidado para que tais temas não veiculem e cristalizem estereótipos folclorizados sobre as identidades locais. (ii) Formas de designação das identidades locais como lugares de construção de sentidos identitários. (iii) Usos linguísticos como lugares de construção de significados simbólicos, como pronúncia, entonação, léxico, morfossintaxe, marcadores discursivos e outras expressões; tais usos linguísticos tendem a ser sensíveis à apreciação social constituindo-se em estereótipos. É o que se nota, por exemplo, em peças humorísticas que parodiam identidades regionais através da manipulação estilizada de construções linguísticas, como a peça stand up “Aventuras de Darci”, por Moriel Adriano da Costa, e a peça “Dona Bilica”, por Vanderléia Will.
Alguns exemplos sobre apreciações envolvendo a relação entre os usos linguísticos e identidade regional (ser manezinho) seguem abaixo, a título de ilustração da maneira como as pessoas avaliam e manipulam certas construções linguísticas.
[…] meu linguajar não traz aquele traço da nossa cultura, do nosso linguajar cantado […] aquele que fala oi, oi , o coitado, aquele né (Trecho de entrevista Varsul, – 40, F, primário)[2]
[…] se tu vai pro interior do Ribeirão da Ilha, onde lá, onde lá não chegou, lá tu vai encontrá o manezinho típico, que pouca influência tem desse mundo que taí […] (Trecho de entrevista do Varsul – F, 2º grau)
Sobre o conceito de identidade, trata-se de considera-lo como um processo dinâmico, em contínua construção e elaboração, assim como são as práticas linguístico-discursivas. Sucintamente, Brubaker (2000), organiza as concepções sobre identidade em dois grandes blocos: por um lado, estão as concepções consideradas fortes, que operam pela manutenção de traços regulares e identificadores de indivíduos, grupos ou categorias sociais. Por outro lado, estão as concepções fracas, em que as identidades são tidas como fluidas, múltiplas, instáveis, fragmentadas, negociadas, em fluxo. O autor propõe, então, uma perspectiva que considere as identiades como resultado de três processos interligados:
– Processo de auto-identificação: Como alguém se identifica com uma dada categoria identitária regional (ser manezinho)?
– Processo de identificação pelo outro: Como as pessoas identificam alguém como sendo manezinho?
– Processo de identificação institucional: Como os discursos oficiais identificam/categorizam uma dada identidade?
A partir disso, consideramos que os significados identitários de tradição devem ser vistos na relação dos sujeitos consigo mesmos, com seus pares e com as instituições que os cercam. Por exemplo, no contexto de Florianópolis, é importante considerar como a identidade “nativa” é continuamente construída e negociada nessas três instâncias e como os usos linguísticos operam em relação a elas. Essa consideração processual e dinâmica busca, também, desconstruir ideias estereotipadas e essencializadas de “natividade” e de pertenciamento. Essa desconstrução sinaliza para uma dimensão política que problematiza a rigidez de certas categorias identitárias impostas sobre os sujeitos.
6 PALAVRAS FINAIS
Este texto teve como objetivo refletir sobre a relação entre língua, identidade e tradição a partir de quatro estudos interligados: o primeiro estudo abordou a maneira como significados identitários são inscritos em usos linguísticos específicos, os marcadores discursivos, sendo validados e reconhecidos pelas pessoas como traços identitários. O segundo estudo problematizou o conceito de identidade e língua germânica do Sul do Brasil, apontando para a sua heterogeneidade e dispersão; a terceira sessão traz um relato de experiência sobre os desafios enfrentados pelos alunos indígenas no Curso de Licenciatura Indígena Intercultural da UFSC, bem como os desafios postos aos agentes institucionais de tais iniciativas, a partir da perspectiva de uma estudante do curso de Letras; por fim, a última sessão problematiza as categorias estanques de identidade, língua e tradição, sinalizando para uma perspectiva processual e dinâmica, que considere as línguas como produtos de práticas discursivas e identitárias.
REFERÊNCIAS
BRUBAKER, R.; COOPER, F. Beyond ‘Identity’. Theory and Society, 29, p.1-47, 2000.
COUPLAND, Nikolas. Style: language variation an identity. Cambridge: Cambridge University Press, 2007.
ECKERT, Penelope. Three waves of variation study: The emergence of meaning in the study of variation. Annual Review of Anthropology, n. 41, p. 87-100, jun 2012.
______. Style and social meaning. In: ______; RICKFORD, John R. (Org.). Style and sociolinguistic variation. Cambridge: Cambridge University Press, 2001. p. 119-126.
______. The meaning of style. In: CHIANG, W. F.; CHUN, E.; MAHALINGAPPA, L. & MEHUS, S. (Ed.). Proceedings of the Eleventh Annual Symposium about Language and Society – Texas Linguistic Forum, v. 47, p. 41-53, 2004. Disponível em: < http://studentorgs.utexas.edu/salsa/proceedings/2003/eckert.pdf>. Acesso em: 18 out 2011.
_____ . Linguistic variation as social practice. Oxford: Blackwell, 2004a.
GÖRSKI, Edair Maria; VALLE, Carla Regina Martins. A variação estilística em entrevistas sociolinguísticas: uma (re)leitura do modelo laboviano. In: GÖRSKI, Edair Maria; COELHO, Izete Lehmkuhl; NUNES DE SOUZA, Christiane Maria (Org.). Variação estilística – reflexões teórico-metodológicas e propostas de análise. Coleção Linguística. V. 3. Florianópolis: Insular, 2014. p. 67-92.
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. 11. ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2005.
MENDOZA-DENTON, Norma. Language and Identity. In: CHAMBERS, Jack; TRUDGILL, Peter.; SCHILLING-ESTES, Natalie. (Ed.). The handbook of language variation and change. Oxford: Blackwell, 2002. p. 475-499.
SCHILLING-ESTES, Natalie. Investigating stylistic variation. In: ______; CHAMBERS, Jack; TRUDGILL, Peter (Ed.) The handbook of language variation and change. Oxford: Blackwell Publishing, 2002. p. 375-401.
SEVERO, Cristine Görski. A questão da identidade e o lócus da variação/mudança em diferentes abordagens sociolinguísticas. Revista Letra Magna, ano 04, n. 07, 2007. p. 1-9.
VALLE, Carla Regina Martins; GÖRSKI, Edair Maria. Por um tratamento multidimensional da variação estilística na entrevista sociolinguística. In: GÖRSKI, Edair Maria; COELHO, Izete Lehmkuhl; NUNES DE SOUZA, Christiane Maria (Org.). Variação estilística – reflexões teórico-metodológicas e propostas de análise. Coleção Linguística. V. 3. Florianópolis: Insular, 2014. p. 93-121.
VALLE, Carla Regina Martins. Multifuncionalidade, mudança e variação de marcadores discursivos derivados de verbos cognitivos: forças semântico-pragmáticas, estilísticas e identitárias em competição. Tese (Doutorado em Linguística). Programa de Pós-graduação em Linguística, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2014.
[1] Docente do Programa de Pós-Graduação em Linguística/UFSC, crisgorski@gmail.com; Pós-Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Linguística/UFSC, carlavalle10@gmail.com; Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Linguística/UFSC, pelithi@gmail.com; Graduanda do Curso de Letras-Português/UFSC, rerbc@hotmail.com.
[2] Entrevistas oriundas do banco de dados Varsul – Projeto Variação Linguística na Região Sul do Brasil. Os termos F e H definem gênero (feminino e masculino), o número define a idade. Há, também, menção à escolarização dos sujeitos.